sábado, 26 de setembro de 2009

PERÍODO DE REFLEXÃO

Eu, sozinho em casa, sentado no sofá, quieto e com as mãos pousadas sobre os joelhos, a olhar para a televisão apagada. Calor fora de época e silêncio sepulcral. A campainha toca. Levanto-me devagar, com ensaiado estilo. Há uma teatralidade excessiva nos meus movimentos como se estivesse a ser filmado. Caminho lentamente, tão lentamente que a campainha torna a tocar. Mantenho o passo para não prejudicar o estilo.
Ponho a mão no puxador. Hesito. Olho pelo óculo. Hesito. O som estridente da campainha regressa. Rodo a chave e abro a porta, muito devagar.
Oi - cumprimenta-me a brasileira, toda promessas, chupando languidamente um chupa ("Um chupa misto?" Podia perguntar mas não o faço).
Olá - respondo, tão entusiasmado como se estivesse num velório.
Posso? - pergunta ela, constatando a minha falta de movimento para a deixar passar. Não sei porquê olha-me para as mãos, vazias.
Ó Daniela... - balbucio-lhe o nome em tom pesaroso. Olho-a sem expressão (mas cheio de estilo, claro) e informo-a, lacónico, ainda que com um ligeiro sotaque brasileiro que não consigo evitar: - Hoje não dá.
Mas... - Ela olha-me desolada. - Mas... - repete, rodando languidamente o chupa sobre a língua. - Tem a certeza? - pergunta num sussurro provocante com um sotaque de veludo, terminando com os lábios envolvendo o chupa que empurra e puxa devagar.
Engulo em seco e respiro fundo para ganhar coragem: - Hoje é o período de reflexão - explico, apontando para os alvos dos dardos com as trombas dos candidatos. - Desculpa, Daniela, mas tenho de continuar a reflectir - e fecho a porta, suave mas resolutamente ante o olhar magoado e o beicinho triste da brasileira.
TEXTO DA AUTORIA DE GARFANHO

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