sexta-feira, 8 de outubro de 2010

Memórias...do Trolei

Proveniente da Adega Azul em S. Pedro da Cova, a carreira 11 servia o transporte colectivo em direcção ao Porto, até ao Bolhão. Levava-me para todo o lado, à baixa, ao cinema, às aulas, à praia(...), e eu que sempre viajava com cara de sono. Chegava quase sempre apinhado de caretas mal-humoradas a caminho dos empregos. A entrada fazia-se pela porta traseira do veículo, directo à “cozinha”, que se atropelava na ânsia de apanhar um lugar vago. Ninguém escapava ao “pica” que, entalado no seu cubículo apertado, conferia o passe ou obliterava os bilhetes. Eu subia sempre as escadas para o piso superior e ali, se houvesse lugar vago nos bancos da 1ª fila, sentia-me um privilegiado, mas a única vantagem era psicológica. O troleicarro andava sempre lento e muito atrasado, mas mesmo assim eu julgava triunfar sobre o tempo perdido. Talvez espiar os outros passageiros, nomeadamente as raparigas bonitas e transeuntes fosse a melhor das distracções. Ainda que fosse difícil alcançar as raias do tédio, com uma vista panorâmica sobre o reboliço urbano não era difícil para o comum passageiro, como eu, dormitar até babar! Refastelado nos desconfortáveis assentos de napa vermelha, eu observava o deslizar passivo do pachorrento veículo, preso aos cabos eléctricos seguros pelos suspensórios. Estes amigos do ambiente transportavam passageiros carregados de compras da Rua de Santa Catarina e do Bolhão. Neles entravam aos magotes os alunos do "Alexandre", onde eu estudava, e do “Rainha”. No Bonfim subiam os que chegavam trazidos pelo comboio até Campanhã. Na Praça das Flores um grupo de operárias encarregava-se de trazer outra animação à viajem. Em S. Roque, junto à Ponte de Rio Tinto, o solícito motorista aguardava uns minutinhos para que os passageiros fizessem o transbordo do 88. E o metálico caixote cor de laranja baloiçava o caminho todo e muitas vezes rangia, até parado… “réque-réque réque-réque”, quando as varas se soltavam dos cabos. É claro que se perdiam preciosos minutos, mas quando temos de permanecer durante um certo período com outras pessoas dentro dos transportes públicos, a nossa disposição e capacidade de observação supera qualquer monotonia. Sobretudo à noite, quando não há o que ver pela janela, as pessoas são “obrigadas” a se vasculharem. Naquele alheamento natural, a distracção óbvia do jornal, do livro, do sono e da cusquice da gente bonita. Recordando bem as faces das pessoas servidas pelo trolei das sete e meia, percebia-se que havia desconforto mas havia um notável sentimento de partilha, uma comunicação audível e sincera, onde os problemas da vida eram contados a rir e as cenas dos próximos capítulos da novela da vida surgiam com um "até amanhã se Deus quiser".
Este texto que me fez ir ao baú das minhas recordações consta da cartilha das memórias do Quim Tóne que muito gentilmente mo cedeu para o publicar.

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